Múltiplos: assim costumam e precisam ser os bons artistas circenses. Multiplicidade que caracteriza também nossa entrevistada: a historiadora. pesquisadora e professora, Dra. Erminia Silva, que traz o circo e suas riquezas no DNA e aprimora, constantemente, este envolvimento a cada trabalho desenvolvido. Erminia traz a vivência de alguém pertencente a uma ampla e pioneira família de circenses aliada a uma vida profissional de pesquisa dedicada a este universo que remete ao desafio, à surpresa, à técnica apurada e ao espetáculo. Nesta entrevista, ela fala sobre a experiência de pertencer, junto a 14 primos de sua geração familiar a não adentrarem o picadeiro, sobre o panorama do circo no Brasil, além de outros temas.
– Você pertence à quarta geração circense da sua família. Faz parte, entretanto, de um grupo de primos e irmãos que foram os primeiros a estudarem em uma escola dita “formal” em vez de perpetuar a tradição familiar de dedicação às apresentações circenses. Como se deu esta espécie de ruptura com esta tradição em meados dos anos 50?
Na verdade, os circenses, ao redor do mundo, já estavam antenados com esta nova realidade. Isto porque, em 1922, foi fundada a primeira escola de circo fora da lona, na antiga URSS, por Lenin, com a presença de figuras como o poeta e dramaturgo Maiakovski. Nesta época, os grupos familiares eram os principais espaços de produção de circo, então foi uma grande novidade. Não havia televisão, quase não tinha rádio, apenas telegráfico, mas devido ao nomadismo circense essas coisas se propagavam. No âmbito nacional, este processo de que o circo não seria mais projeto de futuro para crianças e adolescentes já vinha desde a década de 1930. Na época, a valoração e valorização social passavam por ter diploma, na escola dita “formal”. Uso as aspas porque, para mim, ao se definir um processo de aprendizagem como formal e outro como informal, já se está, de alguma forma, indicando uma desigualdade, e não diferença, que desqualifica já que outras formas de transmitir conhecimento também possuem processo pedagógico. Ao parar, principalmente em São Paulo e Rio de Janeiro, estes artistas se introduziram totalmente nas manifestações artísticas locais fazendo shows em circos, teatros, rádios que possuíam auditórios. São Paulo possuía o Café dos Artistas, onde reuniam-se profissionais, principalmente de circo, e que funcionava como uma rede de encontros e de contratos entre autores, atores, músicos, etc. Ainda em São Paulo, nas décadas de 1950 e 60, começaram a surgir as Comissões de Cultura de Teatro, Circo no Governo. Dentre as reivindicações dos circenses, havia a criação de escola de circo para os descendentes destes circenses que pararam de itinerar. Isto nunca aconteceu. A primeira escola de circo, a Academia Piolin de Artes Circenses, surgiu tempos depois, em 1978. Então, pensando na questão da ruptura, acho que foi mais um modo novo de organização do trabalho no sentido da história do circo.
-E como foi este processo na sua família?
Minha tia caçula, já falecida, na década de 1950 já tinha ido morar em Campinas para estudar, foi interna numa escola de freiras. Minha prima mais velha, nascida em 1948, fez o mesmo quando chegou em idade escolar. Neste ano, na verdade, foi aprovada uma lei que obrigava qualquer escola a receber filhos de gente de circo embora, naquele momento e até hoje, ela não fosse totalmente respeitada. De toda forma, já havia esta intenção forte nos circenses da minha família e de outras de que isto seria necessário, embora eles ainda não tivessem muita noção do que representaria a longo prazo. Era algo inédito no Brasil. Em alguns casos como o meu, minha mãe e meu pai continuaram a viajar e os filhos ficaram com outros familiares. Outros não tinham com quem deixar as crianças e acabavam parando de itinerar pelo país. Nossa geração é de 14 primos e nenhum foi ser artista; tenho duas primas gêmeas que se apresentavam no número de bicicleta junto com os pais e tios. Pelos nove anos, entretanto, pararam para estudar em São Paulo, fizeram faculdade, e uma delas, a Rosicler, depois de formada fisioterapeuta, voltou a trabalhar com espetáculo circenses. Então, houve uma mudança porque nunca na história do circo, em várias famílias ao mesmo tempo, você tinha uma geração inteira que não vai ser circense. Isso não significou, contudo, que houve ruptura no processo da produção da linguagem circense. Ela passou por modos de transformações diferentes, principalmente após as constituições das escolas de circo – em São Paulo e Rio de Janeiro, e os projetos sociais que denominamos circo social.
-Embora não tenha se tornado uma artista circense, a senhora tornou-se uma pesquisadora com uma ampla e diversificada obra voltada para o universo do circo. Que trabalhos, além dos livros, artigos e teses, vem fazendo utilizando-se desta linguagem circense?
Na verdade, o que publiquei primeiro foi o Doutorado, sobre O Circo-Teatro e Benjamim de Oliveira e, depois, o Mestrado. Entre um e outro, foram vários artigos, textos, capítulos de livros e obras completas. De alguns anos para cá, venho atuando também na área de saúde fazendo arte no cuidado de pacientes por meio de uma Linha de Pesquisa Micropolítica do trabalho e o cuidado em saúde da UFRJ, no Rio de Janeiro, coordenada por Emerson E. Merhy. Nessa linha, temos encontros mensais desde 2010, com a proposta dos Sinais que Vêm da Rua que objetiva trabalhar com trabalhadores e usuários nas unidades de saúde e nas escolas com alunos e professores, sem transformá-los em objetos da saúde (doença) ou da educação (como marionete). A proposta é questionar a forma tanto na área da saúde como da educação sobre o modo como os usuários são rapidamente transformados em objetos, perdendo suas condições de sujeito de si. Quando esses usuários, ou mesmo os alunos, entram nos espaços institucionais do campo da saúde, eles têm que deixar suas vidas, suas muitas formas de existir, “penduradas do lado de fora” para se tornarem uma doença e alguém que nada sabe de si, só o que lhe é perguntado pelos profissionais de saúde, são despojados de seus saberes próprios. Tomamos isso para poder pensar o que a rua vem dando de sinais para nos interrogar sobre essas formas de cuidar, que descuida. Por isso, tomamos como do nosso interesse os coletivos que vivem nas ruas, por várias razões, pois entendemos que eles são claramente os que nos interrogam sobre os nossos não saberes de modo imediato. Nos interrogam sobre nossos pré-conceitos. E, a arte sob suas várias expressividades, tem sido um forte aliado nesses tipos de trabalho, pois é pura expressão de si como uma obra de arte. Tomamos o viver como obra de arte, por isso não propomos pensar nas artes apenas com função terapêutica, curativas, mas como dispositivo de produção das narrativas de si de cada um. Nos encontros, os usuários, mas também todos os trabalhadores do campo da saúde (médicos, enfermeiros, agentes comunitários, etc.), podem tentar saber o que aquelas duas existências (profissional da saúde – usuário) são para além de um projeto terapêutico, para além da diabetes, da hipertensão, etc. Uma gama enorme de vidas aparece nesses encontros que não são levadas em conta. Nas escolas, em particular nas redes educativas em situação de pobreza, não se oferta nada ou quase nada que esteja vinculado às artes em geral. Há uma preguiça generalizada em ver nos encontros alunos-professores mais coisas a serem vivenciadas juntos. A relação que procuramos construir aposta que para avançarmos nessa direção temos que produzir processos de encontros onde não haja hierarquia de saberes, mas diferenças que podem ser emprestadas para que o outro experimente o meu lugar, bem como eu o dele. Esse movimento dos Sinais tem encontrado coletivos muito criativos inventando modos de existir ricos na produção de mais vida em cada um.
–E quanto ao portal gerenciado por você e por Daniel de Carvalho Lopes, o Circonteúdo? Sabemos que ele precisa, atualmente, da colaboração das pessoas para que se mantenha ativo, não é? Explique-nos um pouco mais.
Para mim é um dos meus mais importantes investimentos. Comecei com Verônica Tamaoki com o site Pindorama. Depois de algum tempo, fizemos uma reestruturada e transformamos em Circonteudo – portal da diversidade circense. Verônica saiu, mas, solidária e generosamente, me passou todo o conteúdo que havia no Pindorama, assim reiniciamos o Circonteudo com novas propostas e herdeiros do anterior. Daniel de Carvalho Lopes se tornou meu parceiro nessa empreitada, que foi fundamental para a continuidade. Agora, além de nós dois, temos também a companhia de Giane Carneira. Embora exista desde 2006, nunca tivemos apoio financeiro para o site. Na realidade, nunca quisemos patrocínio que pudesse limitar-nos. Publicamos a diversidade circense, como em uma livraria onde existe todo tipo de publicação em livros, trabalhos acadêmicos, vídeos e vídeos-entrevistas, filmes, artigos, festivais, inclusive lançamento de livros. Nosso site é o único, até hoje, a ter relações de circos itinerantes, escolas de circo e circo social, grupos e artistas, festivais, que ainda são pesquisados, inclusive, por órgãos governamentais. Somos conscientes que essas relações estão defasadas, pois tudo que está lá é fruto do trabalho de nós três, sem ajuda. Sempre tentamos fazer cobertura de tudo que seja produção da linguagem circense, seja onde for que ela seja produzida. Mesmo que discordemos do ponto de vista da pessoa, do ponto de vista teórico, publicamos porque se trata de uma biblioteca, uma livraria virtual. Só não entra nessa livraria – por não compactuamos com isso – temas como pedofilia, nazismo, fascismo, nazismo. A questão é que, neste momento, o programa onde o site está hospedado está dando bug. Há quase um ano, na verdade, não conseguimos colocar nada novo. A sorte é que o Circonteúdo é um portal que se for pesquisado durante 365 dias por ano, ainda não terá sido totalmente conhecido. Então, é preciso migar para outra plataforma digital, o que é caro e trabalhoso. Por isso iremos, em breve, iniciar uma captação via crownfunding. Atualmente, temos publicações em português e espanhol, mas pretendemos, no futuro, disponibilizar também em francês, inglês e italiano, embora queiramos que a prioridade seja mostrar o quanto temos de produção no Brasil e na América Latina.
– Diante da ampla pesquisa que desenvolve e do que observa, como definiria a questão quanto à denominação do que é ou não tradicional?
Difícil definir, responder, mas entendo que tradição não pode ser percebida como algo parado, nostálgico. Os realizadores do Circo Zanni, por exemplo, são artistas independentes, mas que se unem em cooperativa para montar os espetáculos. Quando isto acontece, apresentam-se na lona, com todos os filhos no picadeiro. Se formos pensar no circo tradicional de origem familiar, pode-se dizer que eles não são tradicionais, entretanto, na verdade, eles são. Então, você me pergunta: e o circo itinerante de lona (embora o material não seja mais este, mas continua como referência afetiva, do modelo de produção do circo)? Não coloco se é tradicional ou não porque a composição hoje é bastante distinta. A Escola Nacional de Circo, por exemplo, possui um toldo, mas ela é tradicional? Os professores da escola foram oriundos dos primeiros circenses que pararam no Rio de Janeiro, nas décadas de 1970/80, então fazem um discurso de que são tradicionais. Eles tiveram, entretanto, que se transformar, reinventar, porque caso não o fizessem talvez nem estivessem mais dando aulas de circo. Uma escola de circo não é o mesmo que estar no circo itinerante. Claro que todas têm seu processo pedagógico, mas não é igual.
E como analisa esse panorama da produção circense no Brasil?
O panorama de agora pode mudar daqui a 5 ou 10 anos. A produção de linguagens circenses passa por transformações o tempo inteiro. Agora, o que percebo é a diminuição da quantidade das produções do chamado circo de lona de uma forma significativa, em até 70%, comparando com a época em que meu pai atuava. Em alguns locais, como interior do Nordeste, Minas Gerais, Paraná, entre outros, este número é maior enquanto em outros não há absolutamente nada. Neste contexto, há uma regionalidade em cada um destes circos, de cada local, e uma diversidade muito grande entre eles. Além disso, atualmente, há, por exemplo, malabaristas que aprenderam malabares ou pessoas que montam um trapézio de circo a partir de informações obtidas na internet. Enfim, hoje, você vê processos de produção da linguagem circense em todos os cantos da cidade. Este é o circo no contemporâneo, com suas diferenças. Um Soleil, por exemplo, possui um modo de organização do trabalho completamente empresarial. Beto Carrero contratava famílias como artistas e gestores. O Soleil contrata artistas, isolados. Não posso dizer que uma é menos ou mais do que a outra. Há coisas boas e ruins em cada uma delas. Considero, por exemplo, a atual produção do circo itinerante de lona pobre em relação a tipos de espetáculo, a qualidade. Apesar disso, atualmente nas cidades, no urbano, não há como não ver a quantidade de produções circenses em todos os lugares. Dos mais de cinco mil municípios brasileiros, poucos são os que não tem alguém aprendendo, ensinando e fazendo circo. Então, não dá para ver o panorama circense atual sem pensar numa diversidade enorme de estética e técnicas, culturais e regionais.
-Qual a sua opinião a respeito dos projetos de Circo Social?
Sempre tive admiração por estas propostas. E, embora tenham mudando ao longo do tempo, sempre tiveram como foco crianças e adolescentes que não tinham acessibilidade aos processos culturais, mas se estende também para além deles. Há, atualmente, uma polêmica a respeito: que fazer com esses jovens depois que se formam aos 18 anos? Não tenho uma resposta para isso, mas acho que é preciso deixar claro que o Circo Social não precisa, necessariamente, produzir crianças artistas. Afinal, qual é a questão do circo social?Ao trabalhar a linguagem circense, não se trabalha apenas acrobacia mas teatralização, música, som, luz, cenografia, coreografia. Então, se você consegue dar esse processo pedagógico, educacional, de produção de conhecimento para criança, você abriu um leque para a vida dela. Ela pode usar estas coisas para ser artista ou outra coisa não relacionada, como médica, por exemplo. Não estamos preocupados em formar apenas profissionais, mas sim em ofertar arte, cultura. Para mim, o processo pedagógico que passa uma criança ao frequentar escolas de circo, que incluo também o circo social, dá a ela uma capacidade de trabalho no coletivo, diversidade, que a escola chamada “oficial” não faz. Claro que o que ela irá fazer com toda essa experiência que vivencia foge ao nosso controle. O importante é continuar oferecendo sempre tudo, pois as “oficiais” não o fazem, a não ser para uma determinada classe social em escolas privadas.
Quais, na sua opinião, as principais dificuldades enfrentadas pelo artista circenses?
Poderia dizer que são econômicas, mas são, na verdade, inúmeras. Qual a luta do artista? Todas as lutas. A sobrevivência é uma delas, mas não é só isso. É respeito, reconhecimento. É poder ser enxergado como produtor de conhecimento. Vários alunos meus, de escola de circo, por exemplo, dizem que os pais perguntam “o que você está fazendo? ”. Ao responderem “ Escola de Circo”, escutam: “Não, sério. Vai fazer o que e quando? “
Sobre mitos e curiosidades do universo circense, sabemos que um deles, desmistificado por você, seria de que o conhecido Benjamim de Oliveira, considerado o primeiro palhaço negro do país, na verdade, não ostenta este título. Como surgiu este mito?
Costuma-se falar da presença dos escravos nas fazendas, casas-grandes e plantações. Acontece que o dono do circo também os adquiria. Ao entrar neste universo, entretanto, o negro não continuava apenas escravo. Virava artista. O Benjamim entrou em um contexto semelhante. Ele era alforriado, fugiu com o circo, mas o dono do circo não sabia que ele era liberto, alforriado. Afinal, fugiu em 1882, quando ainda existia escravidão. Ter negros ou “mulatos” nos picadeiros do Brasil, entretanto, não era novidade. O primeiro registro que encontrei quanto a isso foi um contrato de uma companhia de Madri, situada em Buenos Aires, em meados de 1790, comprando escravos; e na descrição desse contrato eles faziam de tudo no espetáculo, inclusive ensinar os filhos brancos dos proprietários. O mito quanto ao Benjamim ser “o primeiro palhaço negro”, aconteceu pelo seguinte motivo: em 1940, ele estava velho, doente e sem dinheiro. Vale destacar que foi uma pessoa importantíssima no Rio de Janeiro. Seu circo–teatro era uma escola para onde o dramaturgo Arthur Azevedo, até mesmo, mandava os artistas para aprender lá. Então, neste período do final da década de 40, diante das dificuldades de Benjamim, os artistas do RJ começaram uma campanha para que ele recebesse uma espécie de aposentadoria. Neste momento, Procópio Ferreira, com o propósito de reforçar o pleito (conseguido após envio de proposta para o escritor Jorge Amado, então deputado federal pelo Partido Comunista), escreveu nos jornais que Benjamim foi o primeiro palhaço negro do Brasil e que ele inventou o Circo-Teatro. Dois mitos que ele carrega até hoje. Para saber mais leia meu livro que está disponível no Circonteudo (rs).
– Como definira o seu relacionamento com a Escola Pernambucana de Circo?
Tive uma relação afetiva com a EPC logo no primeiro instante. Isto aconteceu a partir do meu encontro com a Rede Circo do Mundo, aproximadamente na segunda metade de 90. Quem me iniciou na Rede Circo do Mundo foi o projeto “Se Essa Rua Fosse Minha” e, logo depois, a EPC, que usei muito como referência e que sempre vi como desenvolvedora de um trabalho incrível em relação à questão do Circo Social. Trabalho que representa a amplitude que dá ao utilizar o circo como uma potente ferramenta pedagógica, que significa também saber sobre coreografa, teatro, música, etc. O educar no processo da linguagem circense amplifica demais o estar no mundo para a criança. As potências que se pode trabalhar na linguagem circense, não se trabalham na escola. Quando venho dar oficinas aqui para os jovens em geral, mas da Trupe Circus também, toda vez fico admirada como eles estão conectados com tudo o que está acontecendo, com os debates e questões que levantam durante minhas aulas. Com certeza, parte significante disso tudo tem a ver com a EPC, por isso ela é sempre uma referência em vários lugares onde vou.